09 outubro, 2011

A «VILA ALTA» DE ALENQUER

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O ADRO DA MISERICÓRDIA 
(UM VELHA HISTÓRIA TIRADA DE UM VELHO JORNAL) 
«Tem sido, de épocas remotas até ao presente, o adro da Misericórdia o centro de reuniões dos ilustrados da terra. Ali se têm enterrado e desenterrado muitas reputações.
Teve Alenquer os conventos de frades de S. Francisco, Santa Catarina e Carnota; as colegiadas de Santo Estêvão, S. Pedro, Triana e Várzea, aonde eram admitidos grande número de ociosos; haviam os escrivães dos corregedores, provedores, juízes de fora e muitos outros, sendo então esta vila denominada a terra de penas e glórias.
Em todas as tardes, até alta noite, grande parte daquela caterva de indivíduos tomava assento na bancada do adro discutindo religião, política, justiça e a vida privada de cada um dos ausentes e dos que, pouco a pouco, se retiravam.
Fez em tempo parte daquela reunião o venerável Padre Manuel da Costa Martins, avô dos sr. Alfredo Pereira do Carmo, sendo sempre o último a retirar.
Perguntando um dia porque era sempre o último a sair daquele lugar, respondeu:
- Quero ouvir o que dizem dos outros e não quero que ouçam o que dizem de mim.
Acabaram os frades, as colegiadas e a nova organização judiciária e administrativa resumiu o número de escrivães, mas ainda assim o adro da Misericórdia continuou a ser frequentado por muitos indivíduos da primeira sociedade: - Não sabemos se com os antigos vícios e virtudes…».

-In O ALEMQUERENSE,  N.º 192 de 15 de Novembro de 1891
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As manhãs de Domingo, porque mais sossegadas e livres de carros em incessante movimento, são para mim boa ocasião para deambular pelas ruas de Alenquer. Subi à minha Vila Alta de sempre, e quando olhei de frente a Igreja da Misericórdia, logo me veio à memória a história acima transcrita.
Também nos meus tempos de infância e juventude, aquele banco que ali se vê era poiso certo para a cavaqueira e, não diria má língua, mas para uma revista noticiosa do que de bom e mau pelo bairro ia acontecendo. E, olhando o banco, é como se ainda ali visse os irmãos Paulo, o Adriano Mendonça, o meu tio Renato, o Álvaro Avellar, o Zeca Pina, o Zé Augusto Carteiro entusiasmado com as aventuras do Papillon que o Século publicava diariamente em tiras de banda desenhada... Como é (sempre) bom regressar a esta Vila Alta, centro histórico da vila de Alenquer!
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Mas, olhando melhor, pergunto a mim mesmo o que faz ali aquele «matacão» carregado de fios (eléctricos? dos telefones? da tv cabo? de todos e mais algum que agora esqueço?) projectado contra a fachada sóbria da centenária igreja? Realmente... E pergunto: Quando será que essas empresas perdulárias em ordenados milionários dos seus administradores se dignam enterrar a fiarada, numa atitude de respeito pelo nossso património e pelas nossa zonas urbanas mais antigas e qualificadas?
Mas, que mais vejo? Que fazem por aqui estes candeeiros «pindéricos» (a crise pode justificar muita coisa, mas não justifica tudo)? Ao menos que fossem uns candeeiros «lanterna», vagamente apontando ao antigo, como os que mais recentemente foram colocados nos passeios à beira-rio...
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Nasci nesta primeira casa da antiga Rua Direita da Praça, depois Rua Jornal A Verdade, hoje Rua Renato Leitão Lourenço. Mas digo-vos uma coisa: fui um puto com sorte, pois nesse passeio, hoje feito estacionamento automóvel, brinquei eu muitas vezes à sombra das árvores que aí existiam (entre elas uma ameixoeira cujos frutos não tinham tempo para amadurecer) e dei belas pedaladas de triciclo. Avante... 


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Também brinquei muito no largo deste chafariz. No imóvel coberto de azulejos morou a família Batoréu, por baixo, ficava a loja do sr. Marques, e mesmo em frente, a salsicharia e padaria do sr. Ventura. Ao lado, depois da travessa, ficava a taberna do Moreira (depois do Galinha) e, por cima, morava a sr.ª Amélia do Hotel, ficando no rés do chão o escritório do solicitador sr. Juta. Ainda no andar térreo, era o lugar de frutas e hortaliças da sr.ª Margarida (a que alguns chamavam «Maria Gulosa»), também lugar de peregrinação e de culto da miudagem que aí comprava os rebuçados com os cromos da bola. Sempre no afã de completar a caderneta não havia tostão que escapasse! No primeiro andar viria anos depois a morar o meu avô Tomé, e, após a sua retirada, foi escritório do advogado Dr. Ralha Leitão.
Hoje está tudo velho... aposto vai cair! Mas havia mais. Aqui, neste largo reunia de madrugada a «praça de homens» onde os jornaleiros vinham alugar os seus braços. E como dar largas à imaginação não custa nada, já pensaram como aquela parede escalavrada ficaria bonita com um painel de azulejos evocativo desses tempos difíceis que faziam de cada «cavador» um herói?
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Do Adro da Igreja, caminhando agora em sentido oposto, entra-se no Largo Luís de Camões ou Largo da Câmara, por natureza e vocação a sala de visitas da vila. Naquele prédio que ali se vê, morou a sr.ª Júlia Carreira e, por debaixo, ficava o escritório de seguros da «Império» que pertencia ao sr. Fernando Campeão, então comandante dos bombeiros e onde trabalhava a nossa grande actriz amadora Maria Luísa. Também lá morou o Rocha com a sua filharada. Bom homem e bom guitarrista, o Rocha foi o grande animador dos conjuntos de baile locais.
Hoje está no estado que se vê. Aposto que vai de pantanas para o quintal do Mimoso...
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Quem se aproximar do gradeamento, sempre tem a recompensa de, olhando para a direita, ver lá no alto a Igreja conventual de S. Francisco, ex-libris da vila de Alenquer. Mas, tenho a certeza, que no alto do campanário o galo (que dizia à vila o tempo que ia fazer) está a olhar um tanto ou quanto admirado para aquela «molhada» de antenas de comunicações que conspurcam uma paisagem que se dizia ser intocável! Canta galo! Canta até que alguém te ouça...
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E agora... Agora, não digo mais nada. São só duas bonitas fotografias para lavarem os olhos de tanta coisa que não deveriam ter visto na ilustração desta minha «viagem», quase sentimental, onde recordei a Vila Alta de há cincoenta anos. Mas, acreditem, Alenquer merece este incómodo (é sempre incómodo para quem o escreve e para quem o sofre) que, assim o espero, tão só deve ser interpretado como uma ajuda, talvez impertinente, aos homens e mulheres de boa vontade da minha terra a quem os alenquerenses confiaram a «coisa» pública, ainda por cima em tempo de «vacas magras» e de executivo «balcanizado».