23 fevereiro, 2012

FAZ 25 ANOS QUE PARTISTE...

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PORQUE NENHUM DE NÓS ANDA SOZINHO // E ATÉ OS MORTOS VÃO AO NOSSO LADO
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A jornada é longa e o caminho agreste. O tempo, bem, o tempo continua a brincar com os Homens... Passaram-se 25 anos que partiste? Quem diria, talvez porque a tua música nunca nos deixou, talvez porque - como um dia escreveu José Gomes Ferreira, «O Poeta», - «(...) até os mortos vão ao nosso lado», nunca demos pela tua ausência.
Mas hoje queremos recordar-te! Ou porque «Os Vampiros» voltaram em força, ou porque «Os meninos do bairro negro» voltaram a ter fome, ou porque se fez ouvir, mais uma vez, a «Canção do Desterro», queremos recordar-te. E iremos fazê-lo com as palavras de alguém que te conheceu bem - Manuel Louzã Henriques - e por isso as escreveu para uma colectânea de discos teus, «José Afonso», editada pela Orfeu já lá vão muitos anos:
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«AQUELE - o Zeca - é terra da nossa terra. Eis a voz... e já não sabemos se é de metais que nos fala, das coisas do Inverno, se tem o signo do pólen, do estrume glorioso das palavras, ou semente. Não sabemos se é notícia, anúncio ou pré-anúncio de Abril aqui, de Abris além.
Ouvindo-o talvez o mouro reacorde e procure os seus caminhos de meca, um velho godo apreste armas e ferramentas, o sefardita prepare o farnel da viagem. Talvez a helénica cítara e o corno pastoril dum viriato em nós. Há cajados, gaitas e concertinas, botas grossas, mãos calejadas, cântaros partidos junto às fontes.
Ouvindo-o, fala-nos a viola e o cavaco, gela a angústia das pedras e o sangue corre à beira dos rios. Quasi ao rés-bronze canoro do Paredes, cristal e água do Bettencourt, o quente e frio da nossa pátria, que ele é também herdeiro pobre dum povo deserdado. Quasi ao rés sela-se o compromisso, apertam-se as mãos e levantam-se os punhos. Ouvindo-o.
Pensando-o, pensa-se a pátria cinzenta, a clara mágoa do tempo e a tristíssima alegria. Quem te pôs na garganta tal força e tal fraqueza? Tanta cinza e tanto mármore, meu velho e aflito coração? - Um povo de romeiros e vagamundos, o que abriu as portas do mar e perdeu a chave de casa, que bebeu vinho e lágrimas, um que descobriu mundos e não descobriu os próprios braços. - Fui eu e foste tu e mais aquele e o outro, os vivos e os mortos, os que abrindo a arca do peito do tempo a Arca abrirão um dia.
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Um outro amigo teu, o Fernando Assis Pacheco, pela mesma ocasião, disse de ti: «Ser heterodoxo, minoria de um, avesso das verdades oficiais, custa como o diabo. José Afonso está aí que não me desmente. Honra lhe seja feita, ele é da raça dos que não vão em futebóis mansos». Pois é isso mesmo, camarada. Chegou mais uma vez o tempo de não irmos em «futebóis mansos». Com o teu exemplo e a tua voz «pelas praias do mar nos vamos //  à procura da manhã clara».

20 fevereiro, 2012

1212 - 2012 - VIII CENTENÁRIO DO PRIMEIRO FORAL DE ALENQUER

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A NUMÁRIA DO FORAL (1)
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- Numária dos primeiros reinados, entre ela o dinheiro (bolhão) de D. Afonso Henriques, reconhecível pelo pentalfa gravado.
 - In "Lei da Amotaçaria" com Introdução, Tradução e Notas de Aristides Pinheiro e Abílio Rita - Edição do BPSM
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Uma leitura da carta de foral de 1212 leva-nos à identificação das seguintes moedas: maravedis, dinheiros, mealhas e soldos. As três primeiras enquandram-se no conceito de «moeda-mercadoria» ou «moeda-objecto», porque batidas em metal precioso (ou não), possuíam um valor efectivo, o valor desse mesmo metal, normalmente o ouro ou a prata, daí o seu valor intrínseco variar de acordo com as flutuações do preço desse mesmo metal no mercado(1).
Já o soldo, tal como a libra,  não passava de «moeda de conta», isto é, não correspondia a qualquer espécie efectiva, mas, tão só, a um certo número de peças lavradas, isto de acordo com o sistema monetário vigente.
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Em primeiro lugar, um marco de prata valha doze libras em moeda portuguesa; um dinheiro de Leão valha três dinheiros portugueses; uma onça de ouro valha onze libras em moeda portuguesa; um dinheiro burgalês valha três dinheiros e uma mealha portugueses; um dinheiro tornês valha quatro dinheiros e uma mealha portugueses; um morabitino novo de ouro valha vinte e dois soldos (...).                                                    
                           - In «Lei da Almotaçaria» de D. Afonso III                
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Recuando aos princípios da nacionalidade, verificamos que o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, unicamente cunhou dinheiros que eram moedas de bilhão, uma liga de prata e cobre onde o último metal predominava, mas, a par destas, circulavam também moedas de ouro muçulmanas ou castelhanas imitando as primeiras: os maravedis ou morabitinos, dos quais logo falaremos.
Tendo o nosso primeiro monarca falecido em 1185, sucedeu-lhe no trono D. Sancho I, o qual, sabiamente, soube utilizar as hostes dos muitos cruzados que em armadas vindas do norte da Europa tocavam o território português a caminho da Terra Santa, para dilatar o território que havia sido conquistado por seu pai. Assim, chegou a conquistar Silves, uma das pérolas do Islão na Península, todavia haveria de a ceder de novo ao infiel face à investidas das hordas de Almansor, que o obrigaram a recuar até à linha do Tejo, perdendo, entre outras praças, Alcácer do Sal, Palmela, Almada e Coina, sendo as últimas três destruídas. D. Sancho I, faleceria em 1211 e do seu testamento resultaria que sua filha D. Sancha havaria de ficar com a vila de Alenquer, a quem outorga carta de foral em 1212.
Portanto, quando falamos da numária invocada no foral, será ela a de D. Sancho I, logo aquela que mais nos interessa aqui indagar. Para tanto, começaremos por referir que, após refrear os seus intuitos conquistadores ante a ofensiva almóada, D. Sancho, "O Povoador", percebeu que tinha de consolidar a sua linha de defesa e, ao mesmo tempo, povoar o território recém-conquistado, tornando-se desse modo mais um administrador do que um guerreiro. Reza a história que, apesar dos revezes sofridos, teve sucesso nas duas coisas, sucesso esse que o seu testamento de 1188 e documentos subsequentes parecem confirmar:
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(...) que meu filho el-rei D. Afonso possua o meu reino com minhas rendas e celeiros e duzentos mil maravedis que estão nas torres de Coimbra e seis mil maravedis de Évora (...)Mando também que meu filho o infante D. Pedro tenha quarenta mil maravedis dos quais o Mestre e freires do Templo tem em Tomar vinte mil e o Prior e freires do Hospital outros vinte mil em Belver (...)O Infante D. Fernando haja quarenta mil maravedis (...)e o meu neto D. Fernando outros quarenta mil maravedis. (...) Dei também a minha filha D. Teresa (...) quarenta mil maravedis e duzentos e cincoenta marcos de prata de Leiria. À Rainha D. Sancha dei também (...) quarenta mil maravdeis e duzentos e cincoenta marcos de prata... etc, etc. [Deixou, ainda, aos filhos ilegítimos, entidades religiosas, ordens e mosteiros, algumas centenas de milhares de morabitinos).                  
-Dr. Raul Gonçalves, "A Numária Afonsina", in Selos e Moedas, n.º26, 1/6/1969, Aveiro.    
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Face a tão pródiga disposição testamentária quase somos levados a trocar o cognome de D. Sancho I de «O Povoador» para «O Poupado», pois não deixa de impressionar que, em 26 anos de reinado, haja acumulado tanta riqueza, mesmo sabendo que o monarca teve como Chanceler um tão excelente administrador como o foi Julião Pais (Abril de 1183 a Abril de 1214).
Não sabemos se estes maravedis ou morabitinos(2) acima mencionados foram de cunhagem sua ou se vieram dos reinos vizinhos, embora seja de admitir que, efectivamente, muitos foram aqueles que foram batidos pelos seus oficiais do ofício a partir do ouro confiscado aos vencidos e da mineração então iniciada.
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- Batendo moeda - In "História da Moeda", edição do BPSM
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Efectivamente, D. Sacho I foi o primeiro monarca português a cunhar moeda em ouro, o maravedi de que nos fala a carta de foral, moeda essa mais conhecido pelos numismatas como morabitino. Esta moeda continha, inicialmente, cerca de 3,2 gramas de ouro e « (...) no anverso apresenta a inscrição SACIVS EX RTVGALIS entre dois círculos lineares. No campo a figura do rei coroado a cavalo, empunhando na mão direita a espada e na esquerda o ceptro encimado por uma cruz equilateral. No reverso, a inscrição IN NE PTRIS ILIII SPS SCIA, entre dois círculos lineares. No campo, cinco escudetes dispostos em cruz, carregados de quatro besantes e contornados por quatro estrelas»(3).
Desta moeda, há quem diga que tem muito de comum com o triente visigótico e isso talvez seja um bom motivo para partirmos em busca da sua «árvore genealógica», pois se ela foi a primeira moeda de ouro cunhada por um rei português, não foi, nem de perto, a primeira moeda do mesmo metal que por aqui circulou.
E, como em quase tudo no nosso passado, essa busca leva-nos aos tempos presença romana na Península. Referem os manuais da especialidade que esse povo - de quem herdámos a trilogia vinha/oliveira/trigo - por cá cunhou e fez circular o solidus aureus (soldo de ouro), moeda verdadeiramente sólida nos seus 4,55 gramas de ouro. Em paralelo teriam circulado o aureus ou besante de Bizâncio a que é atribuído idêntico valor ponderal, e com a mesma origem mas valendo 1/3 do solidus, o tremissis ou triens que viria a ser adoptado pelos visigodos que se instalaram na Ibéria.
Quando ou mouros por aqui entraram para cá ficarem por séculos, haveriam de trazer consigo o dinar cunhado no ouro trazido às suas cidades dos confins saarianos (das lendárias minas do Rei Salomão?) ou mesmo da África sub-saariana aonde alguns séculos depois os portugueses chegariam para igual comércio. Com o desagregar do Reino de Córdova em 1009, pelas 39 Taifas que daí nasceram, haveria de circular e de vir o morabitino (de ouro e de prata), o maior ou quadratus in auro, o menor ou mozmodi (maçmudi ou dinarim) e o mealia ou mealia in auro (mealha), que documentos da época também designam por dobras, meias dobras e quartos de dobra. Por último, já ao tempo de D. Afonso Henriques, entraria no território a moeda aurífera dos Almóadas, os dinares, designados nos documentos cristãos por morabitinos ou maravedis.
Seria, pois, nesta numária mourisca que se inspiraria Afonso VIII de Leão e Castela para mandar bater em Toledo os seus morabitinos que os entendidos dizem imitar a primeira, no peso, módulo e até nas inscrições muçulmanas. E toda esta numária, mais os mancusos de Berenguer I da Catalunha, por aqui circularam nos primeiros tempos da nossa nacionalidade, até que D. Sancho I deu início à cunhagem de moeda nacional no mais precioso dos metais.
Essa cunhagem dos morabitinos haveria de ter continuidade nos reinados de D. Afonso II e de D. Sancho II, embora depreciando-se em peso. Se D. Afonso III os cunhou é um facto que divide os estudiosos na matéria, embora pareça que sim. D. Dinis haveria de cunhar a dobra, D. Afonso IV ficar-se-ia pelo dinheiro em bolhão e o turbulento D. Fernando exceder-se-ia cunhando a dobra pé-terra, os gentis e a meia-dobra, assim se saldando a cunhagem em ouro da nossa I Dinastia.
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(1) - A este conceito opõe-se, nitidamente, o de de «moeda-sínbolo» ou «moeda-fiduciária» representada hoje pelo nosso papel moeda que, embora efectiva, ao contrário da «moeda-mercadoria» não possui valor intrínseco.
(2) - Os especialistas em Numismática dizem ignorar, ainda hoje, a verdadeira etimologia deste vocábulo. Um deles, Dr. Raul Gonçalves, em artigo publicado na Revista "Selos e Moedas" refere, no entanto, o seguinte: «No seu Dicionário Numismográfico Luzitano editado em Lisboa em 1835 e reeditado no Porto em 1963 pela Sociedade Portuguesa de Numismática, Frei Francisco dos Prazeres Maranhão diz textualmente a páginas 23 : - Maravidil , Maravidim, Morabitino, Almorovidil, etc. Moeda que se escreve com muita variedade e que, segundo Mariana (L. de Pondere  mens. c 23) já existia em Hespanha no tempo dos godos (...) Alguns querem que venha de "mouro-botino" (espólio dos mouros), porque são despojos que nos ficaram dos mouros.
(3) - Maria José Ferro Tavares, "A moeda portuguesa durante a primeira dinastia (1128-1245)" in História de Portugal, Vol. III, Alfa, Lisboa, 1982. 
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Bibliografia consultada:
- Banco Pinto e Sotto Mayor, História da Moeda [s.d / s.l.].
- Gonçalves, Rui, "A Numária Afonsina", Revista Selos e Moedas, n.º 26,27, 29-30, Secção Filatélica do Clube Galitos de Aveiro, 1969-70.
- Reis, P. Batalha, Cartilha de Numismática Portuguesa, Vol. I e II, Lisboa, 1952. 
- Rita, Abílio e Aristides Pinheiro, Lei da Almotaçaria de 26 de Dezembro de 1253, Banco Pinto & Sotto Mayor, Lisboa, 1983.
------ Moeda de D. Afonso III - Alguns Documentos, Banco Pinto & Sotto Mayor, Lisboa, 1985.
------ O Tesouro de Afonso III e a Amoedação em Coimbra, Banco Pinto & Sotto Mayor, Lisboa, 1987.
- Saraiva, José Hermano (Dir), História de Portugal, Vol. II e III, Alfa, Lisboa,1982.
- Valério, Nuno, O Escudo, Banco de Portugal, Lisboa, 2001.
- Vaz, Ferrar, Numária Medieval Portuguesa, Porto, Sociedade Portuguesa de Numismática, 1955.