07 setembro, 2013

INVASÕES FRANCESAS

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UMA PETIÇÃO DO POVO DE ALENQUER A BERESFORD, CONDE DE TRANCOSO, EM 1811
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- Beresford e Wellington (Gravura da Biblioteca Nacional).
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Estamos, seguramente, na segunda metade do ano de 1812 (ou até em data posterior...), isso nos permite inferir uma alusão, no texto, à Batalha de Salamanca, onde o destinatário desta petição, William Carr Beresford, que comandou pessoalmente o ataque da 3.ª Brigada Portuguesa, ficou gravemente ferido. No entanto, já com os franceses em definitivo fora do território nacional, os alenquerenses, tão duramente castigados pela  primeira e terceira invasão e que tanto haviam trabalhado para a construção dessa intransponível muralha defensiva, as "Linhas de Torres", continuavam a ser mobilizados para essa hercúlea tarefa que se prolongou para além das invasões, não fosse Napoleão lembrar-se, de novo, dos irredutíveis portugueses.
Esta é, assim, uma petição dirigida a esse «protector»  do Povo português, o Marechal-General Beresford, Conde Trancoso, depois Marquês de Campo Maior e Visconde de Beresford na sua Inglaterra, já que S. A. R. o Príncipe Regente D. João (futuro D. João VI) se encontrava com a Corte no Brasil. 
Este precioso documento do Arquivo Histórico Militar é, pois, um impressionante testemunho do sofrimento dos alenquerenses, das injustiças que sofreram e de que não eram merecedores, já que estiveram, em força, na linha da frente da construção dessas afamadas "Linhas". E qual foi a resposta que obtiveram? À margem do documento está o Despacho: «Sem resposta». A iniquidade, os privilégios de classe, o desprezo pelo sofrimento popular, não são, ao que parece, um atributo dos dias de hoje.Neste País, são um mal que vem de longe...

Illm.º [Ilustríssimo] e Ex.mº Sr. Marechal General Conde de Trancoso

Os Povos das quarenta e oito vintenas (1) de que compõem o termo e vila de Alenquer, fiados na justiça e benignidade do grande carácter  de que V. Ex.ª tem dado provas no alto emprego, que S. A. R o Príncipe Regente (2) foi servido confiar-lhe, vão, Ex.mº Sr. cheios do mais profundo acatamento levar à presença de V.ª Ex.ª esta respeitosa súplica.
Quando em 1809 se começaram a construir  as linhas de defesa de Alhandra e Torres Vedras [Linhas de Torres], foram os Povos de Alenquer os que mais se esmeraram em fornecer numerosos destacamentos para a feitura desta grande muralha da independência nacional. Os seus serviços tiveram uma recompensa digna do zelo e patriotismo com que foram prestados: Os Suplicantes [peticionários, requerentes] viram com prazer que toda a fúria dos exércitos franceses se quebraram nesta muralha da nossa liberdade; e estamos [convictos], por terem seguido o virtuoso exemplo de seus Avós, que sempre acudiram com presteza aos apertos da Monarquia. Trazem no coração o Ilustre General, que tirou tão sabiamente partido das vantagens do terreno.

- Como se vê, os de Alenquer dirigem-se ao ilustre militar - e depois Governador do Reino -elogiando-o e relevando o papel que eles, alenquerenses, desempenharam na construção das fortificações das Linhas de Torres, sentindo-se recompensados pelo papel determinante que estas desempenharam para a derrota do inimigo. Mas...

Todavia, Exm.º Sr., a devastadora invasão de 1810 apoucou os recursos dos Suplicantes: a guerra, a fome e as moléstias reduziram a mil e cem o número dos trabalhadores da vila e todo o seu termo; e os empregados públicos encontram a maior dificuldade em preencher os destacamentos que lhes são exigidos [para os trabalhos da] fortificação.
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 - Batalha do Vimeiro (gravura da Biblioteca Nacional).
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Estavam os Suplicantes esperançados em que os gloriosos feitos do exército Aliado reduziriam o número de requisições e dos requeridos: encheram-se de alegria quando viram que a memorável batalha de Salamanca, em que V.ª Ex.ª derramou o seu sangue em nossa defesa (penhor eterno de amor e fidelidade à pessoa de V.ª Ex.ª), arrojara os Franceses da Capital de Espanha para a extremidade das duas Castelas; mas a sorte individual dos Suplicantes não melhorou com este sucesso.
Um destacamento de trezentos homens é todos os quinze dias enviado do termo de Alenquer para trabalhar nas linhas de fortificação, empregam-se as medidas mais violentas para completar este número, chegando-se ao extremo de prender na cadeia pública as mulheres de muitos desgraçados que desamparam o seu seu país natal (3) e se retiram para as povoações vizinhas para se remirem de tamanho vexame; os que faltam por algum motivo legítimo são taxados arbitrariamente em mil e seiscentos e até dois mil réis para pagamento (como nos inculcaram) de quem por eles trabalha nas ditas fortificações.

- Com os franceses praticamente expulsos da Península, os trabalhos nas Linhas continuavam, e os alenquerenses, que tanto se haviam alegrado (e esperançado) com o insucesso napoleónico a partir da sua derrota em Salamanca, continuavam, também eles sujeitos a medidas violentas que os amarravam e subjugavam ao trabalho nas fortificações. A sua sorte não mudara...
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- Pormenor de uma gravura de Ribeiro Cristino mostrando a Real Fábrica de papel que logrou resistir às invasões.
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A Agricultura, Exm..º Sr., esta actividade fecunda da prosperidade pública e base mais sólida dos Impérios bem constituídos, foi a primeira que se ressentiu dos efeitos daquelas medidas. Um termo que tem mais de trinta léguas quadradas, não é possível cultivar-se só com oitocentos homens que ficam disponíveis da massa total da sua povoação. Alguns proprietários ricos e mais acreditados na corte, procuraram e obtiveram isenções e privilégios para os trabalhadores que amanhavam os seus prédios; mas estes privilégios agravaram o mal em vez de o remediar, porque redundaram todos em prejuízo da parte não privilegiada dos habitantes.
Seguiu-se daqui que muitos prédios não se cultivaram nem cultivam por falta de braços, e que os terrenos mais pingues [férteis] se convertem em baldios com grave dano do público e dos particulares, que não colhendo o fruto das suas terras mal podem satisfazer as contribuições e tributos destinados a manter a guerra.
Por outro lado Exm.º Sr., o miserável jornaleiro, que só tem o seu braço para sustentar-se, a si e à sua desditosa família, não pode preencher estes deveres sagrados com os mesquinhos dois tostões que se lhe pagam nas linhas e que apenas chegam para o seu diário passadio; e muito menos pode pagar todos os quinze dias o pesado tributo de dezasseis tostões ou dois mil réis a quem por ele desempenha aquela obrigação.
Os Suplicantes, tendo a honra de levar à presença de V. Ex.ª esta reverente súplica, protestam ao mesmo tempo que estão prontos a fazer todos os sacrifícios para a salvação da Pátria: mas eles sabem que os extremos só se devem exigir na extremidade (4); e graças ao valor das tropas Aliadas, e aos grandes Generais que as comandam, Portugal não se acha agora, nem provavelmente se achará mais nesse deplorável estado.
Além de que, todos os lugares e vilas comarcãs de Norte e Sul do Tejo, como Salvaterra, Benavente, Azambuja, Aveiras, Alcoentre, e outras muitas, não têm fornecido um só homem para trabalhar nas linhas; e se o bem que delas resulta, é um bem geral, não há motivo algum razoável para que os Suplicantes vivam oprimidos e seus vizinhos os não ajudem a suportar o peso do serviço público.
Tal é, Exm.º Sr., a singela e fiel narração do que padecem os Suplicantes há dois anos a esta parte; e só V,. Ex.ª é quem lhes pode dar o conveniente remédio: os Suplicantes assim o esperam com a maior confiança.

- Daqui ressalta, com clara evidência, o prejuízo para a Agricultura - principal actividade económica à época - ocasionado por estas mobilizações forçadas e já injustificadas, mal pagas, excessivamente punidas mesmo quando os incumpridores tinham motivo justificado. Por outro lado, os privilégios dos grandes proprietários que, ainda por cima, faziam recair sobre os restantes trabalhadores mais trabalho forçado, na medida em que diminuíam a base de recrutamento. De notar ainda a situação de excepção (negativa) dos habitantes de Alenquer em relação aos habitantes dos concelhos vizinhos isentos deste trabalho. Como se não bastara terem sofrido mais do que outros as agruras da invasão por viverem à beira das Linhas, mas fora delas, ainda tiveram que suportar por largo tempo esta discriminação.
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E. R. M.
(seguem-se 25 assinaturas em duas páginas, reproduzindo-se a primeira delas)

(1) Vintena - Antiga divisão administrativa já referenciada nas Ordenações Afonsinas e extinta com o Liberalismo. Correspondia a 20 vizinhos (chefes de família) agrupados numa "Cabeça", lugar ou aldeia.
(2) S. A. R. O Príncipe Regente - Sua Alteza Real o Príncipe Regente (D. João, futuro D. João VI).
(3) seu país natal - Curioso que ainda se utilizasse esta expressão para definir "terra natal", no caso Alenquer.
(4) os extremos só se devem exigir na extremidade - Interpreto como: os grandes sacrifícios só se devem exigir em tempos extremamente difíceis.

Fonte: PT AHM/DIV/1/14/186/29.

Nota: O texto foi por mim adaptado ao português actual no grafismo de algumas palavras, na pontuação e em raros casos na construção de frases.
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 O primeiro signatário deste documento, Gonçalo Manuel Peixoto, era primo de D. Miguel Pereira Forjaz, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, mas, nem por isso, a petição viria a ter melhor acolhimento. Tomámos conhecimento desta relação de parentesco ao consultar um outro documento em que Gonçalo Peixoto se dirige ao seu "primo", em resposta a uma missiva desse abordando uma questão sobre solípedes.Talvez esse parentesco justifique ter sido ele o primeiro a assinar...