01 maio, 2012

Nesta madrugada do 1.º de Maio...

JURO QUE OUVI ESTOIRAREM 25 MORTEIROS!
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-Ilustração do pintor comunista Dias Coelho, assassinado pela PIDE
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«Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.»
- Ary dos Santos em "As Portas que Abril abriu".
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Naquela Vila Alta da minha infância, o Manel era meu vizinho e morava numa casa modesta, mais ou menos a meio da pequena travessa que vai dar, de frente, à fonte de S. Pedro. Filho de gente humilde, o seu pai era, como então se dizia, cavador, pois alugava os braços aos proprietários agrícolas para  à força de enxada amanhar as propriedades. Fraco sustento para uma família com três filhos, mas, como era proverbial naqueles tempos de miséria, tudo se criava tal e qualmente como as aves do campo. Talvez, por isso, lhes chamavam os Melrinhos...
A brincadeira nos juntou nas corridas à volta do jardim da Câmara, ou nos jogos atrás dos Paços do Concelho por cima da Casa da Bomba, outras vezes nos improvisados campos pelados por Detrás da Misericórdia ou do Adro de S. Francisco, ocasiões em que, quando os derbys nos corriam mal, perseguíamos à pedrada, Calçadinha abaixo, os adversários dos outros bairros. O Melrinho era dos rijos, e, em mais do que um desaguisado, cheguei a provar isso mesmo com uns olhos à Belenenses.
Depois da 4.ª classe a vida separou-nos, eu continuei nos estudos e ele lá foi para o trabalho oficinal, ao que se seguiu a tropa, eu na Força Aérea, ele no Exército. Certa noite do PREC, passada em vigilância revolucionária aos movimentos na Base da Ota, ele contou-me como se havia desenrascado com a sua tropa:
-  «O sargento apareceu-nos a perguntar quem trabalhava de pedreiro, eh pá, eu vi naquilo um furo e ofereci-me logo!».
- «Olha lá, mas tu nunca foste pedreiro na tua vida?».
- «Pois não, mas pensei que seria fácil. Comecei a levantar uma parede e quando ela já estava lá no alto... caiu-me em cima! O assunto podia ter acabado mal, mas não, passado pouco tempo era barista.».
O Melrinho era assim, desenrascado, trabalhador e... teimoso! Nunca conheci ninguém mais teimoso do aquilo!
Seria o 25 de Abril que nos viria a juntar, de novo, na construção do ideal de uma «sociedade sem amos», e, pegando na deixa do «teimoso», lembro-me que certa vez, por alturas de uma das primeiras campanhas eleitorais que se seguiram à Revolução, sendo eu o responsável concelhio pela «Agitação e Propaganda», organizei os camaradas em brigadas que haviam de cobrir de cartazes as paredes da vila e arredores.
Armadas de pincéis e baldes de cola, lá foram as brigadas revolucionárias despachadas para ocuparem na quadrícula, desenhada no mapa da vila e arredores, a área que haveriam de preencher (para desespero dos proprietários das casas e muros). Nem um palmo de parede podia escapar, esta era uma guerra a vencer!
Tendo-me eu demorado mais um pouco no Centro de Trabalho, ultimando uns assuntos para depois me ir juntar a uma das equipas agitadoras, foi com admiração e espanto que vi entrar pela porta, por onde mal acabara de sair, um companheiro desalentado evidenciando forte contrariedade:
- «Então Fernando, já acabaram?» Perguntei eu em ar de gozo.
- «Não fui expulso da minha brigada».
- «Então? Conta-me lá como isso aconteceu...».
- «Foi logo ao primeiro cartaz. Eu puxava para um lado, o Melrinho puxava para o outro, não chegámos a acordo e ele expulsou-me».
- «E quantos elementos tinha a tua brigada?» Perguntei eu ansioso, tentado avaliar os danos causados por tão drástica decisão.
- «Era eu e ele».
- «Deixa lá amigo, já vais comigo...», rematei eu enquanto ia remoendo, em sussurro, «aquilo é que é teimoso... e preferiu continuar sozinho!».
Numa outra noite de campanha eleitoral, haveria ainda de confirmar a sua faceta de «desenrascado», quando o desafio era, então, partir para o Alto Concelho em igual missão de propaganda. Um camarada comerciante havia colocado à nossa disposição uma carrinha em fim de vida que nós atulhámos com cartazes, pincéis e baldes de cola entre os quais se arrumaram o Vítor e o Titó. Quando me sentei no «lugar do morto», ao lado do Melrinho com carta de condução a cheirar a fresco, ainda lhe perguntei:
- «Vou seguro aqui?»
- «Estás parvo ou quê? Tomaras tu ter sempre um condutor tão competente...».
Pois sim, pensei eu cá para com os meus botões, mas, na verdade, não ia lá muito à vontade. Percorridos alguns quilómetros, no desfazer de uma curva, fui arrancado aos meus pensamentos com um  grito do Melrinho:
- «Agarrem-se! Agarrem-se porque vamos para a vinha...».
E fomos. Quando olhei para o lado ainda vi o Manel com o volante solto nas mãos e zás! Uma aterragem forçada na vinha e um tombo para o lado. Quando saí pelo lugar do condutor, a minha primeira preocupação foi a de saber se todos estavam bem. Mas, lá atrás, o Titó gritava desalmadamente na escuridão da noite:
- «Tirem-me daqui porque estou cheio de sangue! Tirem-me daqui!».
Forte que nem um Hércules o Melrinho arrancou, literalmente, as portas da rectaguarda, e, atrás delas veio o Titó. Não cheio de sangue como dizia aos berros, mas completamente banhado em cola!
Mas, não se pense que o Manel era só teimoso e desenrascado. O Manel era também decidido e valente, como o provou, certa noite, em que tomámos de assalto a antiga esquadra da polícia.
No pós-25 de Abril todos os democratas das mais variadas oposições ao regime fascista reuniam na antiga escola do Areal, onde,  em algo parecido com uma assembleia popular, se delineavam estratégias para erradicação do regime caído, arrancando-o das mais variadas instâncias onde se havia instalado. Só que o tempo era de «tomar partido» e os primeiros que o fizeram foram os socialistas, abrindo uma sede na actual Av.ª 25 de Abril e elegendo um Secretariado largamente publicitado em cartaz. Nós, os militantes comunistas, também achávamos que era tempo de abrirmos a nossa sede, mas o Partido, em Lisboa, mandava-nos aguentar sob o chapéu «Povo/MFA».
Os mais velhos, mais avisados e disciplinados, lá iam acatando ordeiramente a ordem do Comité Central, mas os mais novos não estiveram para mais esperas, pelo que, certa noite, o Vladimiro trouxe uma carrinha, onde, com a ajuda do Melrinho, carregámos alguma mobília e lá fomos nós dando asas à Revolução. Chegados à ex-esquadra polícia, desactivada pelo «25 de Abril» para evitar males maiores, o Manel meteu ombros à porta, descarregámos os tarecos e hasteámos a bandeira vermelha da foice e do martelo! No dia seguinte Alenquer acordou com uma nova sede partidária que ainda hoje lá está.
Nesses tempos conturbados, o Melrinho, honesto, forte e decidido, foi feito «fiscal da Câmara», mas a sociedade ainda não estava preparada para um fiscal implacável e insubornável, pelo que entrou fiscal e saiu canalizador, profissão que lhe daria na vida o sustento, a si e à família que entretanto constituiu. Depois, nos finais dos anos 80, as nossas «águas ideológicas» separaram-se. Nessa altura vislumbrei-lhe alguma mágoa, mas a amizade, essa continuou e sobre o assunto nunca trocámos uma palavra que fosse.
Todavia, se o Melrinho foi nesta vila de Alenquer um homem do «25 de Abril», mais o era do «1.º de Maio», porque a sua consciência de classe nunca o deixou esquecer os calos que tinha nas mãos. Assim sendo, quando a data do «Dia do Trabalhador» se avizinhava, lá andava ele de mão estendida angariando dinheiro para foguetes. Havia camaradas que diziam que «este gajo veio ao mundo já de mão estendida», isto porque ele pedia para tudo e para, mas nunca para ele.
E, muitos anos a fio, Alenquer sempre acordou ao som de duas «alvoradas»: A do «25 de Abril» organizada pela Câmara, onde os morteiros estoiravam às 10,00 horas da manhã porque o Carlos Cordeiro considerava ofensivo acordar as pessoas mais cedo (do mesmo modo que sempre disse que «a melhor maneira de estragar o bacalhau é fazê-lo com natas»), e a do 1.º de Maio que ribombava às 8 da manhã, logo ao alvor da madrugada, para roer as consciências adormecidas dos patrões exploradores.
O Melrinho já nos deixou há alguns anos, pois pelo caminho encontrou um cancro mais teimoso do que ele, mas tenho a certeza que lá das alturas onde está, não deve estar nada satisfeito com o que vê cá em baixo. Talvez por isso, hoje dia 1 de Maio de 2012, rompendo o ensurdecedor silêncio da vila adormecida, logo pelas oito de manhã eu ouvi o estoiro de 25 morteiros! Naturalmente ninguém mais os ouviu, mas eu juro que ouvi!