03 novembro, 2014

A IGREJA DE SANTA MARIA DA VÁRZEA

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- Igreja da Várzea, inserida no Bairro do Areal, na actualidade.

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FUTURO "MUSEU DAMIÃO DE GÓIS E DAS VÍTIMAS DA INQUISIÇÃO"

Na próxima quinta-feira, dia 6 de Novembro, Alenquer receberá a visita do senhor Embaixador da Noruega, o qual, no Salão Nobre do Paços do Concelho, assistirá à apresentação do projecto que transformará a Igreja da Várzea no futuro "Museu Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição", projecto esse generosamente financiado pelos noruegueses, após ter sido um dos eleitos entre quantos foram propostos, para o efeito, pelos municípios portugueses que fazem parte da "Rede das Judiarias".
A actual igreja, dessacralizada, é propriedade do município que, há alguns anos, a adquiriu à Diocese de Lisboa, por uma verba, digamos, simpática, visando a sua musealização, oportunidade que só agora surgiu. Durante esses anos de espera, sofreu uma intervenção do antigo IPPAR que lhe proporcionou um novo telhado, obra que na altura se me afigurou de qualidade e bem executada. A intervenção está prevista e orçamentada para o ano de 2015.
Mas, que memórias guarda o vetusto edifício?



Recorrendo ao meu modesto "banco de imagens" esta é a gravura mais antiga que conheço e apresenta o edifício em muito mau estado. Esta gravura, da revista "O Ocidente", foi publicada por Guilherme João Carlos Henriques no seu livro "A Vila de Alenquer", assim como a reprodução de uma obra de Ribeiro Cristino, de data posterior, que a mostra já recuperada, conforme se mostra abaixo.


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- Fragmento de uma gravura de Cristino (anterior a 1870) mostrando o Bairro do Areal onde se situa a igreja da Várzea.

São muito antigas as referências à paróquia de Santa Maria da Várzea e à sua Igreja. Henriques diz que é tradição que o templo original tenha sido edificado pela Infanta Santa Sancha (a mesma que deu à vila a primeira 'carta de foral') e que, «em 1203 já havia prior dela que foi juiz apostólico na causa contra o bispo da Guarda, D. Martinho», donde se infere ser a paróquia anterior ao templo, porque só em 1212 D. Sancha tomou posse da vila.
Já o Prior da Várzea, João Silveira, nas "Respostas" de 1758 escreve que «a Igreja, Colegiada e Paroquial de Santa Maria da Várzea desta vila de Alenquer, se não é a primeira em antiguidade entre as cinco da dita vila, é certamente a segunda (...) e já era paroquial no ano de 1220».
Jogando pela certa, João Pedro Ferro em "Alenquer Medieval" diz-nos que a referência mais antiga a esta freguesia ou paróquia respeita ao ano de 1239, nisso coincidindo com Henriques, quando este último acrescenta que «há também prova indiscutível que a igreja existia em 1239 na carta de venda pela qual a Infanta D. Constança Sanches comprou em Junho daquele ano uma vinha(...)».

- Alenquer quinhentista numa reconstituição (a partir de documentos) de Mestre João Mário - 11 - Igreja da Várzea.
1- Torre de Menagem; 2-Porta da Vila ou de Santo António; 3- Porta do Carvalho e mais tarde da Conceição; 4 - Postigo na muralha que dava para a encosta; 5-Convento de S. Francisco; 6-Igreja de Santiago junto da qual se situava a porta da traição; 7-Igreja de Santo Estêvão no séc. XIX Aula Conde de Ferreira; 8-Igreja de S. Pedro; 9-Ermida de S. Sebastião; 10-Torre da Couraça; 12- Triana; 13- Passadeiras da Rainha; 14-Moinho de papel de Manuel Teixeira.


No final do século XV o templo ardeu - a capela-mor escapou ao incêndio - sendo atribuída à vizinha comunidade judaica a autoria do sinistro. Condenada em processo que lhe foi levantado, foram os judeus da vila obrigados a custear a reconstrução do templo, após o que foram expulsos de Alenquer. É pois este infeliz episódio que liga essa comunidade à história deste templo, procurando-se agora, quando se vai proceder à sua musealização, prestar-lhe justiça assim como às muitas vítimas da Inquisição que por cá caminharam para as masmorras do 'Santo Tribunal'. O cemitério judaico, situava-se em baixo, junto ao rio, nos terrenos camarários onde outrora existiu a 'Fábrica de Papel e Cartão da Ota' (porquê da Ota, perguntam muitos, sendo a resposta simples: houve um erro de identificação do rio, que não é o Ota, mas o Alenquer). Em documentos do século XVIII/XIX, esse terreno aparece identificado como 'Adro dos Judeus'.



Na segunda metade do séc. XVI, estando o templo em muito mau estado de conservação e tendo caído a capela-mor, foi este beneficiado por Damião de Góis que mandou reconstruir a dita capela para aí ser sepultado. O grande humanista ofereceu ainda à vila, e particularmente à Várzea, paramentos, vestes cerimoniais, obras de arte, figuras sacras, etc. De grande valor era um retábulo com portas de Mestre Quintino Matsys, e um quadro de Jeronymo Bosch intitulado "A coroação de Nosso Senhor Jesus Cristo", obras que se supõe terem sido saqueadas pelos franceses aquando das Invasões.
Em finais do séc. XIX encontrava-se o templo, de novo, em completa ruína (o terramoto de 1755 também deve ter contribuído para isso), pelo que foi demolido e reedificado. Do templo anterior, ficou a torre sineira. Este processo parece ter sido lento e moroso, mas, certamente, terá devolvido o templo ao culto. Todavia, eu que nasci em 1947, desde criança que me lembro de o ver fechado e arruinado, ostentando sobre a porta da sacristia uma placa com o escudo da República e os dizeres Junta de Paróquia de Triana.


Hoje é este o estado da Igreja da Várzea, em vésperas da sua requalificação como Museu. O alçado fronteiro apresenta-se assim, como que enterrado, porque, entretanto um arruamento foi construído. 
Uma última nota: aqui fizemos um sucinto historial deste templo a partir de fontes bem conhecidas. Todavia, quem se interessar pelo tema e quiser aprofundar estes dados, aconselhamos a leitura dos textos de Joaquim de Vasconcellos e de Guilherme João Carlos Henriques publicados no "O Archeologo Português" - S. 1 - V. 4 (1898) , n.º 1 a 6 e n.º 10 a 12, textos que deram corpo a uma acesa polémica que aí mantiveram. Também com algum interesse o nº 834 de 1902 da Revista "O Ocidente" que dá grande relevo ao IV Centenário de Damião de Goes. 
Depois, há toda a história ligada à transferência da capela de Damião de Goes para a Igreja de S. Pedro, quando se pensou que a Várzea ia cair e o melhor seria salvar o que de mais relevante ela continha: a capela e os ossos do humanista e de sua esposa. Em 1941 a capela foi, mas os ossos verdadeiros ficaram... Encarregue desse trabalho, o arqueólogo Hipólito Cabaço, pressionado pelo tempo e pelo regime, lá enviou umas ossadas, as quais, só muito recentemente, num interessante trabalho multidisciplinar, foram descartadas como pertencendo ao ilustre alenquerense. Esse facto levou a trabalhos arqueológicos, coroados de êxito, com a descoberta do carneiro de Damião e de meia dúzia de fragmentos ósseos que haviam escapado à cal. Um dos principais rostos dessa equipa multidisciplinar foi o Arq. Fernando Ferreira, autor de "Intervenção Arqueológica na Igreja de S. Pedro (Alenquer) in "Olissipo": Boletim do Grupo de Amigos de Lisboa, Lisboa, II Série, n.º 19, Julho/Dezembro de 2003, pp 29-47 e "Causas da Morte de Damião de Goes", Alenquer: Câmara Municipal, 2006.

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Nota: Depois de publicado este post recebi da minha amiga Alexandra Roldão o link para os Cadernos Gráficos do grande aguarelista (e também pintor e desenhador) que foi Roque Gameiro (1864-1935), na homepage de Alfredo Roque Gameiro. Aí estão alguns desenhos ou esboços feitos pelo artista quando de uma sua passagem por Alenquer e Carnota
Por considerar de todo o interesse mais este testemunho sobre o estado da Igreja da Várzea, em 1896, abaixo o publico, acompanhado do meu sincero agradecimento à amiga que no-lo deu a conhecer:

- A Igreja da Várzea em 1896, vista por Roque Gameiro.