Passaram-se agora 40 anos, e... por isso, hoje apetece-me falar desses tempos em Mueda, quando servi no Aeródromo de Manobra n.º 51, a unidade mais operacional de toda a Força Aérea Portuguesa em todos os tempos! Este Aeródromo dependia do Aeródromo Base N.º 5 em Nacala, essa "cidade" que acima vos apresento num postal de 1969.
Cheguei a Nacala em 1968, a partir de Nampula, trazido por um comboio tipicamente do séc. XIX, da boa era colonial, um comboio com máquina a lenha que, nas subidas, tinha que fazer marcha-atrás para recuperar forças que o habilitassem a ultrapassar a dificuldade. Em alternativa, circulavam umas pequenas ( quase do tamanho de um autocarro ) automotoras a diesel que, volta não volta, tinham furos... Aí todos desciam e iam ajudar a mudar a roda.
Após o meu primeiro acordar no A.B. 5, dirigi-me na companhia de outros camaradas mais antigos na unidade para o refeitório. Este refeitório era já de "paredes levantadas", mas tanto ele como a cozinha deixavam muito a desejar. Aliás, parte da cozinha funcionava ainda ao ar livre, num terreiro anexo, com panelões fervendo em cima de fogueiras. Era aí que se misturava o leite em pó à água em ebulição, após o que se adicionava o café, e, "voilá", aí tinhamos o belo café com leite que, acompanhado de pequenos pães - duríssimos porque eram de farinha de mandioca misturada com alguma de trigo - barrados com margarina, constituia a nossa primeira refeição.
Só que este café com leite, depois de confeccionado, ali ficava destapado, à espera de ser levado para dentro, para o refeitório, logo à mão de semear de qualquer comensal inoportuno. E, foi assim, que vi vir na minha direcção um alentado bode com as suas longas barbas escorrendo café com leite!!! Um dos camaradas mais antigos que me acompanhava, perante o meu ar de incredulidade, deu-me uma "tapa" nas costas e disse:
«Primeira lição: Se um dia o bode não te aparecer, não tomes o pequeno almoço pois o café com leite está envenenado!».
Pensavam que vos ia falar de guerra? Não. Vou falar-vos de comida, pois ao vinte anos a guerra não era a nossa preocupação maior, mas sim a comida. Aos vinte anos temos um estômago do tamanho do mundo!
Antes de vos levar para Mueda ainda vos quero deixar um pequeno apontamento sobre o nosso refeitório em Nacala. Havia tantas, tantas moscas, que não se conseguia comer um prato de sopa sem que antes não"aterrassem" lá dentro meia dúzia de exemplares! Mas um dia o refeitório foi modernizado e foi instalada uma cozinha a vapor. Então não é que quase não havia moscas?! Foi quando dei com um camarada de mesa esforçando-se por alcançar em pleno voo uma solitária mosquita que por ali esvoaçava. Logrado o feito, lançou-a de imediato dentro do seu prato fervente. Reacção dos companheiros de mesa: «Eh pá! Que porcaria vem a ser essa?». Ao que ele respondeu: «Desculpem lá, mas a sopa até nem me sabe bem se não tiver pelo menos uma mosca lá dentro».
Mueda... Bom, Mueda era a capital do Planalto dos Macondes e aí, a uma ponta dessa elevação, ligeiramente distanciado do Exército, ficava o nosso modesto A.M.51. Meia dúzia de aviões e hélis, pouco mais do que meia centena de homens. Também por lá a comida era pouco abundante...
Na natureza tentámos encontrar um qualquer suplemento alimentar, mas, o que por mais lá havia, a jeito de levar um tiraço, eram... corujas! Corujas? «Eh pá sabe-se lá se não darão um bom guizado?». E deram! Mas confesso que o meu atrevimento não foi além de, timidamente, ensopar o pão naquele molho tentador...
Até que um dia alguém fez um reparo: «Hoje vi o rebanho de cabras do "China" a pastar aqui perto». Houve olhares entrecruzados e um pronto: «Está feito! Vamos aos cabritos!». Alguém se lembrou dos meios: «Mas como? A pé?». Resposta do Mariano: «Falamos com o "Fittipaldi" e ele leva a Bedford».
Chegados aqui perguntarão: « Mas quem eram o "China" e o "Fittipaldi"? O "China" que por acaso era indiano, era o proprietário de uma cantina que atendia os militares portugueses pela porta da frente e os da Frelimo pela porta das trazeiras. Assim ganhava a vida e nada mal, ao que constava... O "China" tinha uma filha, que não cheguei a conhecer pois estudava na Beira ou em LM. Dizia-se que era tão feia, tão feia, que se morria de susto só de olhá-la e, talvez por isso, um jornal do "Continente" publicou uma reportagem onde se anunciava que o seu pai oferecia um Mercedes a quem se oferecesse para noivo dela. Penso que não deve ter ficado solteira...
Já o "Fittipaldi" era um nosso camarada soldado-condutor. Dizia-se que o epíteto lhe adveio do seguinte feito: Certo dia ele e a sua Bedford azul terão ido numa coluna do Exército a Mocímboa da Praia, que ficava na costa, fazer abastecimento. À vinda para cá, carregado de bombas, o "Fittipaldi" terá abandonado a coluna porque achava que ela vinha demasiado devagar, e chegou a Mueda umas boas horas antes da referida coluna. Isto não seria nada de espantar, não se desse o caso dessa "picada" não se percorrer sem emboscadas e rebentamentos de minas!
E o golpe deu-se! Escolhido o cabrito, o Paulo de faca de mato na mão saltou da Bedford em andamento e enterrou-a no tenro pescoço do dito cujo (custou-lhe um pé partido e mais alguns dias e Mueda). Pediu-se um grande tabuleiro na cozinha e os respectivos condimentos. Depois, de boleia, fez-se a viagem ao Exército e lá se assou o bicho na padaria. Foi um lauto banquete, uma festa até às tantas!
Sei que, até ao fim da guerra, tornou-se tradição «roubar cabritos ao "China"» mas reivindico, para o grupo abaixo, onde falta o "Fittipaldi", a "honra" de ter sido ele a dar início a essa «praxe»! Quanto ao "China.... Nunca deve ter dado pela falta dos cabritos, tão preocupado que andava em casar a filha!