31 julho, 2009

QUANDO O HILÁRIO DEIXOU DE CANTAR À NOITE NO CHOUPAL

Sinceramente. Custa-me a acreditar que haja alguém que, em noitada de «boa disposição», não tenha intentado cantar o fado coimbrão que nos diz que Quando o Hilário cantava/à noite no choupal/toda a tricana escutava/ai, a sua voz de cristal. Cantou-o sim senhor, pelo menos para concluir que poderia ter muito jeito para os copos, mas nenhum para cantar...
Confesso que quando o fiz lá pensei que o tal Hilário era uma figura imaginária, um estudante sem rosto, nem identidade. Mas não. Augusto Hilário Costa Alves foi, de facto, estudante de Medicina em Coimbra.
Em 1896, quando nessa cidade frequentava o terceiro ano de um curso que, assim o desejava, o deveria conduzir à carreira de médico naval, foi a Viseu, à casa da família, passar as férias da Páscoa e aí faleceu vítima de uma doença fatal à época, a tuberculose.

Um Cancioneiro de Músicas Populares, 3 Vol., 1893/1899 - guardado na Biblioteca Nacional - «colecção recolhida e escrupulosamente trasladada para canto e piano por César A. das Neves / coord. a parte poética por Gualdino de Campos; pref. pelo Exm.º Dr. Teófilo Braga», acolheu os últimos versos escritos pelo estudante Hilário, com a seguinte nota: «Quando nas férias de 1895, Hilário se hospedou em uma dependência do escritório da nossa empresa, ofereceu-nos esta composição dizendo-nos que era o seu último fado, mas que tencionava adicionar-lhe algumas variações e que reservássemos a publicação para quando ele as tivessse composto definitivamente. A morte acaba de surpreender este simpático académico, que se tornou célebre em todo o país pelos seus fados, dos quais este é o terceiro e último que publicamos»:


Á porta do Infinito
A traços largos, profundos
A mão de Deus tinha escrito:
Os teus olhos são dois mundos
...
O mar também tem amante,
O mar também tem mulher,
É casado com a areia,
Dá-lhe beijos quando quer.
...
A minha capa velhinha
Tem a cor da noite escura;
Não a quero por mortalha
Quando fôr p'ra sepultura.
...
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra,
A forma de um coração,
A forma de uma guitarra.
...
Guitarra, minha guitarra,
Solta os teus ais, minhas queixas,
És tú a única amante
Que por outro me não deixas!
...
Vai alta a lua, vai alta,
Brilha nos céus, branca lua;
Vem tu vê-la, minha amada,
Iluminando esta rua.

São ainda de Hilário, mas recolhidos por Fausto Guedes Teixeira, estes últimos versos:

Ouvi dizer ao luar
Com trinados na garganta:
- Quem canta seu mal espanta...
E pus-me então a cantar.
...
As minhas canções vermelhas
Rimá-las-hei com martírios,
Ao ritmo das abelhas
Nas folhas roxas dos lírios.
....
E no País das Quimeras
mil vozes d'anjos dispersos,
A música das esferas,
Hão-de cantar-te os meus versos.
...
Mas é tão fria a luz calma
Do teu olhar...que flagelo!
Se a tua Alma é um mar de gelo
E o olhar é o espelho da alma...
....
Serve-te a madeixa negra
De moldura ao rosto franco,
Como se uma toutinegra
Pousasse num lírio branco,
...
E as minhas quadras singelas,
Feitas de crenças e anelos,
São pequeninas estrelas
Que atiro p'ra os teus cabelos.
....
Nesse teu lábio vermelho
Há risos do sol d'Agosto:
A Alvorada é um espelho,
Onde se mira o teu rosto.
...
A Lua, onde os olhos fito,
A face em nuvens recata,
Como lágrima de prata
Na pálpebra do Infinito...
...
Ás vezes, quando indiciso
Me curvo p'ra o teu olhar.
Vem n'uma lágrima um riso:
-Raio de sol sobre o Mar!
...
E passo a vida tristonho
A cantar, por não saber
Se a Vida está só no Sonho
E a Realidade em morrer...
...
Pequenas da minha terra,
Dou-vos canções; dai-me beijos!
A quem sua alma descerra,
Vai-se-lhe a Alma em desejos!
...
Tenho já seca a garganta:
E como é que isto é, não sei!
-Quem canta seu mal espanta...
pus-me a cantar...e chorei!